O bairro paulistano conhecido como “Bexiga”, localizado no distrito da Bela Vista, no Centro de São Paulo, é tradicionalmente apontado como palco de múltiplas manifestações culturais e lugar de vida de pessoas das mais variadas origens. Território usualmente tido como boêmio e associado ao samba, ao teatro, à gastronomia e à presença de povos de muitas origens (italianos, negros, nordestinos, entre outros), o Bexiga pode passar, à primeira vista, a impressão de se constituir de um território cosmopolita desprovido de conflitos, contradições e violências, ainda que reconhecido como heterogêneo e multifacetado.
Com efeito, ao contrário, testemunhamos nos últimos anos a escalada de processos caracterizados por agressões, disputas e pela tentativa de imposição de silenciamentos à memória e à presença de parte dos grupos sociais presentes no bairro. Tratam-se de ondas recorrentes de silenciamento e expulsão verificadas desde o início do século 20, com forte recorte racial. A onda mais recente de violências se caracteriza pelo avanço predatório do mercado imobiliário na região — por meio de grandes empreendimentos que agridem aspectos que vão desde a geomorfologia até as práticas cotidianas de vida na paisagem, apagando esquinas, teatros, memórias e referências culturais —; pelo avanço de obras de infraestrutura como as do metrô que incidem na demolição de lugares de referência como a sede da Vai-vai; no encaminhamento de escavações arqueológicas que ignoram a memória negra no bairro e no processo de elitização que leva à expulsão das populações de baixa renda que até há pouco tempo davam vida ao bairro.
Como contraponto a estas agressões, também testemunhamos nesses últimos anos o recrudescimento de uma mobilização popular cada vez mais viva e ativa, denunciando tais violências e promovendo as referências culturais que sempre estiveram presentes no bairro. Nesse sentido, ainda que se trate de uma região tradicionalmente marcada por expressiva mobilização política e pela recorrência de disputas e contradições, notamos nesses últimos anos uma intensificação desses processos que justifica um olhar mais detido sobre os acontecimentos e as pautas em jogo.
Em 2017 o Centro de Preservação Cultural ‒ Casa de Dona Yayá (CPC) havia promovido uma primeira edição do seminário “Bexiga: território cultural.” À época algumas destas questões já estavam em pauta, mas seis anos depois esses processos se intensificaram a ponto de demandarem novos olhares. Nesse sentido, o CPC promove agora em parceria com os movimentos Saracura/Vai-Vai e Salve Saracura uma segunda edição ampliada do seminário. Ao longo de três dias de evento pretendemos discutir questões ligadas à arqueologia urbana, à memória negra, à gestão e aos do patrimônio cultural no espaço urbano e às manifestações culturais presentes no território.
programação
28/11, terça-feira
Local:
Centro de Pesquisa e Formação do SESC
Abertura
17h
Centro de Preservação Cultural da USP – Casa de Dona Yayá
Saracura/Vai-vai
Salve Saracura
Mesa 1. Quilombo e patrimônio
17h15
Fábio Velame (UFBA)
Alessandra Ribeiro (Comunidade Jongo Dito Ribeiro)
Vanessa Pereira (Iphan)
Mediação: Claudia Balthazar (Saracura/Vai-Vai)
É notória a presença, no bairro do Bexiga, de um quilombo urbano na região do vale do rio Saracura, entre outras manifestações e formas de permanência da população negra naquele território. A presença marcante da Vai-Vai e de suas manifestações culturais na área que circunda a Praça 14 Bis e na região da Grota do Bexiga, em particular, sempre foi apontada como elemento simbólico de rememoração da presença histórica desse quilombo no lugar, superpondo ao antigo quilombo uma prática cultural perene e de longa duração.
Nesta mesa estamos interessados em debater as várias dimensões e manifestações deste quilombo neste lugar, bem como refletir a partir da contribuição de relatos e análises de outras experiências afins: o que ele era? Como se dava sua relação com a cidade? Como se sedimentou sua memória? Que traços materiais e sinais urbanos temos dele hoje? Como ele reverbera nos dias atuais e que valores e significados ele potencializa? Interessa-nos também pensar nos processos de patrimonialização, memorialização e musealização dos suportes materiais e das práticas associadas a esta referência cultural. Como acautelar? Como preservar? Como salvaguardar? Será que as epistemologias usuais ligadas à teoria da conservação são suficientes ou são necessárias outras elaborações? O debate em torno da presença do quilombo no Saracura e sua continuidade simbólica nas mobilizações contemporâneas nos ajuda a pensar outras formas de imaginar e fazer o patrimônio cultural.
Mesa 2. Arqueologia e diáspora
19h15
Monica Lima (UFRJ)
Paty Marinho (Saracura/Vai-Vai)
Jeanne Crespo (Iphan)
Mediação: Marília Calazans (Saracura/Vai-Vai)
O movimento em torno das escavações no Vale do Saracura, no Bexiga, tem levantado uma série de questões relevantes a respeito dos processos e disputas em torno da sedimentação da memória e de narrativas sobre a cidade. Já se apontou, por exemplo, como a ausência de contato com epistemologias e saberes não-ocidentais ou não usuais ao campo da arqueologia contribui para que se ignore o potencial cognitivo, afetivo e estético de determinadas peças ou artefatos encontrados nos trabalhos de prospecção. O monopólio teórico-metodológico de matriz europeia que domina a arqueologia representa, portanto, ameaças à construção de memórias e identidades ligadas à diáspora africana, aos povos originários e a outros grupos sociais.
Neste sentido, o que esperar do atual trabalho arqueológico em curso e como exigir dele uma abordagem plural e alinhada às várias memórias em jogo? Como pensar processos arqueológicos numa perspectiva de combate ao racismo, ao colonialismo e às demais opressões presentes no espaço urbano? Quais os desafios teóricos e metodológicos para a arqueologia neste contexto?
29/11, quarta-feira
Local:
Centro de Pesquisa e Formação do SESC
17h
Lançamento do Edital do Concurso de Fotografias do Patrimônio Cultural CPC-USP – 2ª Edição: Bixiga
Mesa 3. Moradia e patrimônio cultural
17h15
Vivian Barbour (USP)
Welita Caetano (FLM)
Gisele Brito (Saracura/Vai-Vai)
Mediação: Claudia Muniz
O campo do patrimônio cultural não poucas vezes se viu em meio a disputas e conflitos nos quais se colocaram em polos opostos as pautas da habitação e da preservação. Com efeito, são inúmeros os casos em que se verificaram, em nome de uma suposta necessidade de preservação do patrimônio, processos de deslocamentos populacionais forçados, despejos, elitização e aumento de preço da terra e outras agressões a populações em situação de vulnerabilidade. No entanto, também há casos em que a pauta patrimonial foi mobilizada a fim de reiterar a garantia de direitos e a permanência de classes populares em bens culturais. A região do Bexiga hoje testemunha dinâmicas urbanas nas quais habitação, mercado imobiliário e patrimônio se misturam de formas variadas e tensas. De um lado, trata-se de região com cerca de 900 imóveis tombados em meio a um território com distintas caracterizações demográficas de renda, classe e raça. De outro, assiste-se a um avanço predatório do mercado imobiliário que eleva o preço da terra e promove desfigurações problemáticas na paisagem e no patrimônio. Ao mesmo tempo, a cidade passa por um processo de revisão de seus instrumentos de planejamento e ordenação urbana.
De que forma aliar e garantir a preservação do patrimônio, a salvaguarda das referências culturais das populações que ocupam o território e o seu direito à moradia digna no centro da cidade? Como combater os processos de aumento do preço da terra e expulsão da população de baixa renda? Como esses processos interferem nas políticas de preservação — e como estas afetam a política habitacional?
Mesa 4. Instrumentos de preservação e política urbana
19h15
Mariana Pessoa (USP)
Danielle Dias de Santana (UFRJ)
Cleiton Ferreira (Comunidade Cultural Quilombaque)
Mediação: Gabriel Fernandes (CPC–USP)
Políticas urbanas de preservação e de planejamento têm promovido uma série de encontros e entrecruzamentos em tempos recentes. No caso paulistano, temos visto a formulação de instrumentos como as zonas especiais de preservação, as áreas de proteção cultural, os territórios de interesse da cultura e da paisagem, assim como o avanço da implementação de instrumentos já consolidados, como o registro do patrimônio imaterial. Esses encontros e o avanço dessas políticas, contudo, não acontecem sem tensões e disputas. O Bexiga é um caso particularmente relevante para estudar a aplicação e os efeitos de vários desses novos instrumentos e abordagens, seja pelos desafios inerentes à configuração do território e aos vários grupos sociais envolvidos, seja pelas potencialidades próprias dessa região que concentra cerca de 900 imóveis tombados.
Como pensar esses instrumentos de uma forma democrática e plural, atendendo aos anseios dos vários grupos que ocupam o território sem no entanto neutralizar os conflitos inerentes? Tais instrumentos constituem armadilhas para a mobilização popular ou podem ser ferramentas de engajamento e participação? Eles colaboram na defesa dos direitos de permanência no bairro de populações em situação de vulnerabilidade ao mesmo tempo em que colaboram na salvaguarda do patrimônio?
30/11, quinta-feira
Local:
Centro de Preservação Cultural – Casa de Dona Yayá
Mesa 5. Samba e salvaguarda do patrimônio imaterial
17h15
Claudia Alexandre (Saracura/Vai-Vai)
João Mário Machado (Grupo 13 de Maio de Samba do Cururuquara)
Nilcemar Nogueira (Museu do Samba)
André Felipe (Vai-Vai)
Mediação: Marília Belmonte (Saracura/Vai-Vai)
O Bexiga é um notório território do samba paulistano. Trata-se de uma prática cultural que imprime ao bairro uma paisagem própria, caracterizada pelas rodas, pelos bares, pelos sons e por uma série de outros signos que atuam no dia-a-dia da região. Além disso, o samba é um bem cultural oficialmente reconhecido como patrimônio cultural da cidade de São Paulo. Ao redor da prática do samba encontramos uma enorme teia de práticas e manifestações culturais, assim como personagens, lugares, religiosidades, lembranças, afetos. A salvaguarda do patrimônio imaterial do Bexiga, de um modo geral, e do samba, em particular, juntam-se aos demais instrumentos de preservação e política urbana como elemento fundamental para a salvaguarda das formas de vida, sociabilidade, memória e identidade dos grupos sociais habitantes deste lugar. Apesar disso, são várias e conhecidas as ameaças à prática do samba promovidas em anos recentes — talvez a principal delas tendo sido o despejo da sede da escola de samba Vai-Vai em função das obras do Metrô de São Paulo.
Tendo esse contexto em perspectiva, como pensar a salvaguarda do patrimônio imaterial num contexto urbano e central como o do Bexiga? Como pensar a musealização, patrimonialização e a memória do samba? Que políticas culturais e urbanas são necessárias para a sua salvaguarda?
Encerramento
Participação especial da Velha Guarda do Vai-Vai
19h
serviço
LOCAL E HORÁRIOS
O seminário ocorrerá em dois espaços distintos:
28/11 e 29/11/2023, das 17h às 21h (terça e quarta-feira)
Centro de Pesquisa e Formação do SESC (CPF–SESC)
Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista
4º andar
30/11/2023, das 17h às 21h (quinta-feira)
Centro de Preservação Cultural – Casa de Dona Yayá
Rua Major Diogo, 353, Bela Vista
EVENTO GRATUITO
Não há necessidade de inscrição. Interessados em receber certificado de participação como ouvintes devem preencher formulário que estará localizado junto à entrada do evento.
ORGANIZAÇÃO
Centro de Preservação Cultural – Casa de Dona Yayá
Saracura/Vai-Vai
Salve Saracura